segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

O homem, as árvores, o bem-te-vi, o rio e o machado

Resolvi colocar no blog textos que não tenham relação direta com o livro A Cidade. Então, não estranhe se aparecer textos esporádicos.




Ele olhava para as árvores a sua frente com um olhar impetuoso. Não piscavam aqueles olhos castanhos claros, apertados e quase que escondidos pelas grossas sobrancelhas. Sua pele na cor de chocolate apresentava uma pequena vermelhidão obtida das seis horas do dia anterior limpando o terreno ao redor de sua nova casa.

Disseram para ele: “tu tens um rio bem a frente de sua casa, mas não poderás ver porque elas estão cobrindo a tua visão.” Elas, as árvores, não pareciam se intimidarem com a calosidade que havia nas mãos daquele homem. Mãos calejadas pelo trabalho árduo de trinta anos abrindo trilhas, caminhos e até estradas usando o seu machado, sua ferramenta de trabalho que pertenceu ao seu pai.

O homem triturava com os seus dentes um palito que o ajudava a remover a sujeira da refeição feita em sua casa poucos minutos atrás. E ali, de costas para a sua casa e de frente para as árvores, não deslumbrava a beleza das mesmas, mas apenas desejava ver o rio da porta de sua casa.

Ele ergueu seu machado colocando-o sobre os ombros por trás de sua cabeça e caminhou em direção ao seu desejo de ver o rio. Uma mão segurava firme no cabo e a outra verificava o amolado de sua lâmina que tirava um pouco da sua epiderme a cada passar de dedos. Foi olhando e escolhendo qual árvore receberia o seu fatal golpe primeiro. Pobres árvores, inocentes ferramentas do criador, se soubessem o que lhes aguarda certamente interromperiam a sua função para qual foram destinadas: parariam a sua produção de oxigênio para quem sabe assim, fazer o homem cambalear e adormecer sem o precioso elemento crucial à vida. Pobres árvores, suas raízes não as deixam sair de onde estão. Quem dera pudessem se afastar para os lados para que o homem pudesse ver o tal rio e assim tudo estaria resolvido. Oh pássaros, olham o homem de cima, alguns de suas casas já outros de passagem, tentando entender o que ele fará com aquele objeto que agora é balançado em pêndulo.

“Aqui está! Será esta!” Disse o homem no seu íntimo ao mesmo tempo que repousava a sua mão sobre a sua primeira vítima como que tentado confortar o inconfortável. Pobre vidoeiro de prata, nem a sua cor que lembra uma zebra será o suficiente para impedir o homem. Ele posiciona o seu machado em posição de assassinato e desfere o seu primeiro golpe. E aquele que é conhecido por seu canto, cujo som trissilábico se assemelha ao próprio nome, e sua plumagem parda no dorso e amarela na barriga, que exibe uma listra branca no topo da cabeça e outra na garganta, além de uma cauda de penas negras. Possuindo ainda um longo bico negro, achatado, resistente e um pouco encurvado grita: “Bem-te-vi! Bem-te-vi!”. Grita enquanto voam aos bandos indo para longe daquela cena de um crime, não contra uma árvore, mas contra toda a natureza.

E a primeira vai ao chão. Certo de sua potência e destinado a fazer os seus olhos verem as veredas de águas, o homem avança incansavelmente derrubando o que está a sua frente, a sua direita e a sua esquerda. Golpes únicos para aqueles inocentes vidoeiros de prata que, em uma utopia, poderiam ser chamados de vidoeiros de bronze pois nem se quer as suas raízes se firmaram bem ao solo. Mas ele, o homem, está incansável. Uma a uma, vidoeiros a vidoeiros, caiam frente a lâmina afiada do machado insolente.

Foi quando do céu se ouviu um bramido. Sim, trovões se anunciavam e o céu límpido dava lugar a nuvens carregadas. O trabalho agora deveria ser intensificado. O homem não poderia perder tempo. E cada vez mais veloz e feroz eram os seus golpes. E as primeiras gotas caiam sobre a cabeça do homem. Ao olhar para o seu trabalho, praticamente já concluído, recolheu algumas gotas da chuva que caia em uma de suas mãos e levou ao seu rosto como que agradecido pela água que agora lavava ao seu corpo. Pobre homem, a água poderá lavar o seu corpo, mas não limpará a sua alma.

E quando o homem olha para o rio, observa que o mesmo está aguerrido; forte em seu correr. E ao olhar para mais ao longe vendo o horizonte é testemunho da nuvem soberana que vinha em sua direção. Sim a mãe rogou ao pai e este se fez presente através das águas.

Uma torrente de água sem precedentes começa a cair sobre o outro lado do leito do rio. Ao passar sobre as águas o som audível é como milhares e milhares de pedras caindo, levantando as águas e aumentando o volume do rio. Aqueles olhos do homem outrora apertados, agora são como comportas em meio ao transbordamento de uma represa; abrem-se sagazmente na tentativa de compreender o que estaria por vir. Corre homem, corre! Talvez lá em sua casa tu tenha como se proteger. E ele assim o fez.

A carreira é grande, foram muitos metros até beirar o rio. Mas suas passadas longas e apressadas não foram o suficiente. A chuva caía sobre o seu corpo o que o fazia perder a força das passadas que a cada instante, a cada poucos segundos, seguravam seu levantar de pernas. Seu machado, herança de seu pai estava esforçando-se para acompanhá-lo. Mas o levantar do mesmo, nem quando estava cego e encravado em uma árvore gigante, era tão dificultoso de manusear. Sim, parecia por bem deixar a sua ferramenta de lado, mas não queria abandonar o seu companheiro de longas datas. Mas a mão não obedeceu o coração e subitamente o largou no meio do caminho. Ele não acreditava no acontecido, mas a tormenta era muito forte. Parou para voltar e pegar o seu machado. Suas pernas pareciam levar todos os troncos arrancados desde a sua tenra idade pois por mais esforço que fazia era inútil prosseguir. Então, ele, o homem, caiu.

Arrastando-se em meio as águas que já podiam cobrir a sua cabeça, apalpando a sua frente na busca do seu machado, deslumbrou a parada repentina da água que caiam das comportas do céu. Viu as águas que estavam por debaixo do seu corpo, quase o afagando irem em direção ao rio. Olhava para a relva que imergia rapidamente e pode ver que o seu machado estava a um abrir de sua mão. Ele então sem levantar a sua cabeça, agarrou o seu machado e apoiando-se no mesmo levantou-se. Mas, ao erguer a sua cabeça, pode ver as profundezas do rio. Casas, carros e barcos estavam soterrados nas profundezas daquele rio. E, mais ao centro do mesmo, ele contemplava algo que só os seus olhos poderiam decifrar, pois seus pensamentos e a lógica já o haviam deixado. Uma coluna de água se erguia ao céu ou o céu desceria às águas do rio. E, numa fração de segundos, tudo aquilo se tornava uma imensa onda vindo em sua direção. Correr novamente? Mostre-me as forças. E o homem foi tragado pelas ondas do rio que descia do céu.

O som daquele que alertou os outros pássaros o acordou: “Bem-te-vi! Bem-te-vi!”. O homem estava ali, jogado na lama a metros do que antes foi a sua casa. Ao levantar-se com muita dificuldade, viu o que desejou a momentos atrás: viu o rio. A sua frente uma clareira fazia finalmente o seu olhar apreciar a vista. Ao olhar para o lado, viu o machado do seu pai em meio a lama. O homem pegou o seu machado e partiu para o outro lado da floresta.

Os pássaros contavam os estragos quando avistaram o homem vir novamente em direção ao rio. Em sua mão o machado. Mas o que traria este em seus ombros? Alegrem-se, alegrem-se oh aqueles que cantam nas árvores. Vejam! O homem traz mudas. Sim! Jovens árvores de vidoeiros de prata para o replantio. Primeiro dezenas, depois centenas iam sendo replantadas ao longo da clareira aberta por ele. E ele cavava a terra com as suas próprias mãos e a cada vidoeiro plantado um leve sorriso manifestava-se em seu rosto carrancudo.

E ao final da tarde, apreciando o entardecer, uma leve brisa começa a cair sobre aquele lugar. As luzes douradas do céu explodiam nas gotículas que reluziam sobre a relva. E ele enfim entendeu uma frase que pequeno ouviu de seu pai: “Como o rugido do leão jovem é a indignação do rei, mas como o orvalho sobre a relva é a sua benevolência.” Provérbios – 19:12

Autor: Lucas Coe